"Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar. Postados diante do edifício que já arde de uma ponta à outra, os cegos sentem na cara as ondas vivas do calor do incêndio, recebem-nas como algo que de certo modo os resguarda, tal como as paredes tinham sido antes, ao mesmo tempo, prisão e segurança. Mantêm-se juntos, apertados uns contra os outros, como um rebanho, nenhum deles quer ser a ovelha perdida porque de antemão sabem que nenhum pastor os irá procurar. O fogo vai decrescendo aos poucos, a lua já ilumina outra vez, os cegos começam a desassossegar-se, não podem continuar ali, Eternamente, disse um deles, Alguém perguntou se era dia ou era noite, a razão da incongruente curiosidade soube-se logo, Quem sabe se não nos irão trazer comida, pode ter havido uma confusão, um atraso, outras vezes aconteceu, mas os soldados não estão cá, Isso não quer dizer nada, podem ter-se ido embora por deixarem de ser precisos, Não percebo, Por exemplo, porque deixou de haver contágio, Ou porque se descobriu o remédio para a nossa doença, Era bom, era, Que fazemos, Eu fico aqui até ser dia, E como saberás tu que é dia, Pelo sol, pelo calor do sol, Se o céu estiver encoberto, tantas horas hão-de passar que alguma vez há-de ser dia."
in "Ensaio sobre a Cegueira" de José Saramago
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