08 maio 2009

34

«Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?»
E eu, desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?»
«Não concebo nada como infinito. Como é que eu hei-de conceber qualquer coisa como infinito?»
«Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»
«Porquê?» disse o meu mestre Caeiro.
Fiquei num terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»
«Se acaba, depois não há nada», respondeu.
Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos.
«Mas V. concebe isso?» deixei cair por fim.
«Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.
«Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número — 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior. . .»
«Mas isso são só números», protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
«O que é o 34 na realidade?»

(Álvaro de Campos recordando episódios da vida de Caeiro)

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