"Agora, de repente, como se o mundo se tivesse afastado de si, com pouco mais para ver do que uma vaga sombra que dava pelo nome de Black, dá por si a pensar em coisas que nunca lhe tinham ocorrido antes, e isto começou também a preocupá-lo. Se, neste ponto, pensar é talvez uma palavra demasiado forte, um termo ligeiramente mais modesto – especulação, por exemplo – não andaria longe da verdade. Especular, do latim speculatus, que significa espiar, observar, derivado da palavra speculum, que significa espelho. Ora, espiar Black do outro lado da rua é como se Blue estivesse a olhar para um espelho, e em vez de estar apenas a observar-se a si próprio. A sua vida abrandou tão drasticamente que Blue é agora capaz de ver coisas que previamente escapavam à sua atenção. Por exemplo, a trajectória da luz que atravessa o quarto todos os dias, e a maneira como a certas horas o sol reflecte a neve no canto mais distante do tecto do seu quarto. O pulsar do seu coração, o som da sua respiração, o pestanejar dos seus olhos – Blue tem agora consciência destes ínfimos acontecimentos, e por mais que se esforce por os ignorar, eles persistem na sua mente como uma frase sem sentido incessantemente repetida. Sabe que não pode ser verdade, e contudo aos poucos esta frase parece adquirir um significado."
in "A Trilogia de Nova Iorque" de Paul Auster
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