05 outubro 2010

O Retrato

"Dizendo isto, o pintor tremeu subitamente e empalideceu: olhava-o, destacando-se atrás de uma tela, um rosto contorcido num espasmo. Dois olhos medonhos fitavam-no a direito, como que prontos para o devorar; nos lábios desenhava-se uma ordem ameaçadora para se silenciar. Amedrontado, quis gritar e chamar Nikita, que já soltava roncos hercúleos no vestíbulo, mas deteve-se de repente e desatou a rir. O sentimento de terror fora-se num instante. Tratava-se do retrato que adquirira, do qual se tinha esquecido por completo. O brilho do luar, que iluminava a divisão, incidia nele conferindo-lhe uma vida peculiar. Pôs-se a examiná-lo e a limpá-lo. Molhou uma esponja, passou-a pelo quadro algumas vezes, limpou-o de quase todo o pó e sujidade acumulados ao longo dos anos, pendurou-o à sua frente na parede e admirou ainda mais a invulgar obra: o rosto quase ganhava vida, e os olhos olhavam-no de tal forma que acabou por se sobressaltar e, recuando, observou estupefacto: Está a olhar, está a olhar com olhos humanos!"
 
in "O Retrato"  de Nikolai Gógol

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