01 março 2011

Budapeste

"E pela madrugada ele pegou a mania de balbuciar coisas sem nexo, inventava sons irritantes, uns estalos nos cantos da boca; eu não tinha sossego nem na minha cama, me segurava, me mordia, finalmente estourei: cala a boca, pelo amor de Deus! Calou, e a Vanda saiu em sua defesa: ele está só te imitando. Imitando o quê? Imitando você, que deu para falar dormindo. Eu? Você. Eu? Você. Desde quando? Desce que chegou dessa viagem. Pronto. Descobri naquele instante que em meus sonhos eu falava húngaro.
A passagem por Budapeste se dissipara no meu cérebro. Quando a recordava, era como um rápido acidente, um fotograma que trepidasse na fita da memória. Um lance ilusório, talvez, que me dispensei de referir à Vanda ou a quem quer que fosse. É verdade que a Vanda tampouco se preocupava em saber que grandes escritores eram esses que eu encontrava todo ano, em congressos que ninguém noticiava. Talvez se defendesse de fantasiar aventuras do marido mundo afora, poetisas, dramaturgas, antropólogas que me fizessem perder o juízo e o avião de volta. Portanto seria estúpido relatar, sem convicção, a uma Vanda que não queria ouvir, a minha madrugada solitária em Budapeste. E hoje aquela Budapeste estaria morta e sepultada, não fosse o menino levantá-la do meu sonho."

in "Budapeste" de Chico Buarque 

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