"Era um pensamento que atormentava Lavinia: uma pessoa deixava de existir por degraus. Perto da Place des Vosges tinha passado por um monte de haveres pessoais que tinham sido deitados para a rua, os detritos de uma vida acumulados no passeio estreito. Quase tudo tinha sido vasculhado e espalhado, ficando apenas aquilo que estava partido ou não tinha préstimo. Lavinia tinha parado na rua estreita, chocada com a terrível solidão de tudo aquilo: maços de cartas, empapadas em chuva, um cesto de bicicleta torcido, roupas demasiado usadas ou antiquadas para que algum passante as levasse.
Ficaram uns livros com as lombadas danificadas, um guia de criação de cogumelos a que tinham sido arrancadas as ilustrações, o volume R de uma enciclopédia, com nódoas intermitentes de tinta azul. Escorrendo para fora do passeio, acumulados na sarjeta, viam-se cheques usados e recibos e facturas, com a anotação de pagas, Réglé escrito numa letra delicada, fina. Foi a caligrafia que fez Lavinia parar e curvar-se para observá-la mais de perto. Tinha um toque muito pessoal, como uma voz ténue que procurasse dar sentido áquilo que o tinha perdido. Percebeu que era letra de mulher mesmo antes de descobrir o nome. Solange Montagnac.
Então tudo se resumia áquilo, pensou Lavinia. No fim, era tudo o que restava. Uma vida podia reduzir-se a meia dúzia de traquitanas sem importância. "
in "Crepúsculo" de Katherine Mosby
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